segunda-feira, 3 de março de 2014

Fragmentos de uma vida… (IV)

Naquele fim de tarde deu-se uma cena atípica. Era Ele quem a observava de certa distância sem ser percebido. Ela, acomodada no velho e frio banco da Praça Central, a beleza singular – sua eterna seguidora - repousava em silêncio sob um lenço de seda fina, atípico em terras tropicais. O vento soprava frio e constante, isso justificava o cuidado em agasalhar-se adequadamente, a bela jovem. Ela estava aparentemente sozinha e continuou inerte por alguns instantes, limitando-se a acompanhar o movimento em torno de si apenas com o olhar atento. Atento e despretensioso. Um leve sorriso teceu os lábios dele, e finalmente aproximou-se.

- Você veio. Ele proferiu ao fazer-se notar.

Ela voltou-se em um sorriso iluminado.

- Eu disse que viria. Você faria o mesmo, não? Ela o abraçou com leveza.
- Claro que sim.
- Mas não o fez. Observou ela enquanto ambos se acomodavam. – Não foi ao evento.
- É verdade, admitiu ele, não consegui chegar a tempo. Mas, vi pela televisão. Foi um espetáculo, aquilo lá! E você… você estava além daquilo que imaginei!
- Eu sei que não pôde comparecer. Ela sorriu. – Mas tinha certeza que estava torcendo por mim.
- E agora, depois de algum tempo, está feliz? Como conseguiu vir aqui se agora virou personalidade nacional?
- Ainda é difícil de acreditar. Fato é que estou muito, muito feliz mesmo. Claro que tem percalços, como todo trabalho, mas me preparei tanto para viver isso que as vantagens se sobrepõem as mazelas. Ah!... voltei à nossa cidade pra curtir a família. Uma semana sozinha com ela… acredita nisso? Ela sorriu por fim.
- Estou muito feliz por você. Na verdade quem a conheceu antes, já nutria a certeza do seu sucesso.

Em meio aos sons da cidade, um grupo de jovens surfando em skates barulhentos chamou-lhes a atenção. Eles deslizaram ruidosamente sob o calçadão da Praça Central e pararam a pouca distância, aos gritos e conversas desconexas. Pouco tempo depois, retomaram as plataformas sob rodas e seguiram destino.

- Que loucura… esses garotos! Ela observou. - Você viu que no grupo havia meninas também?
- Vi. Ele sorriu. – E alguns eu conheço.
- Conhece de onde? Ela quis saber.
- Daqui mesmo. Eles praticam "skatismo". Daqui descem pra pista de skate construída a três quadras. A mocinha de capuz rosa trabalha naquela lanchonete ali. Ele apontou o estabelecimento com letreiro luminoso incandescente. – Não raras vezes vou até lá fazer uma boquinha.
- Mas, e agora? Ele a encarou. Você vai disputar a etapa internacional do concurso?
- Sim, em alguns meses. Daqui até lá, tenho um roteiro apertado. Vejo até pouco tempo para tanto trabalho.
- E como você está? Acredita que será mais ou menos difícil?
- Francamente, ainda não parei pra pensar. Participar da etapa internacional é apenas mais uma atribuição que agreguei ao título nacional. Lá, estamos cientes de que devemos cumprir todas as etapas, até o final do ciclo. Isso inclui participar do etapa internacional. Se ganharmos será consequência do trabalho que estamos desenvolvendo.

Ele recostou-se ao banco e sorriu, meneiando de leve a cabeça.

- O que foi? Redarguiu ela.
- Tem aprendido bem as lições. Ao contrário de muitos que se preparam para perder, fico feliz em saber que está em constante preparação pra ganhar. Consciente de que poderá perder, mas preparada pra ganhar. Isso é virtuoso.
- Fazer leituras que destoam de minha faixa etária pode ter contribuído. Retrucou ela a sorrir. – E claro, conversas paralelas em bancos de praças centrais.

Após a leve descontração, os olhares se encontraram. Ele sorriu demonstrando carinho. Ela retribuiu.

- Quero te pedir algo. Ele retomou a conversa.
- O que seria?
- Não permita que nada interfira na conquista das metas já traçadas. Tem feito um belo trabalho com afinco e vontade. Continue com sobriedade até o final. Termine este, daí comece a traçar o próximo.
- E por que eu desistiria?
- Promete que vai até o final sem se deixar envolver por eventos externos. Insistiu ele.

Ela o encarou. Desviou o olhar. Os lábios tremularam timidamente e em seguida, o corpo inteiro. Ele manteve-se firme a encará-la. Ela estremeceu novamente. Seria ela tão óbvia assim? Como poderia ele conhecê-la ao ponto de ler seus pensamentos? Questionou a si mesma, em silêncio. Por fim, ela inspirou profundamente.

- Sim… até o final do ciclo”. Ela proferiu trêmula. Uma lágrima rolou e ele a reteve na sutileza de um gesto.
- As vezes precisamos abdicar. Não podemos ter tudo ao mesmo tempo ou correremos o risco de nada termos amanhã. É uma decisão difícil, eu sei, mas hoje, você tem um papel a desempenhar e não trata-se de um personagem comum. É o seu personagem, que se bem construído fará toda a diferença… pra vida toda.
- Que bom que eu tenho você. Inclinou-se ela ao ombro dele.
- Temos um ao outro. Ele completou. – E podemos demorar a nos ver novamente, mas isso não quer dizer que não estaremos juntos.
- Eu sei. Depois desta semana, não sei quando retornarei aqui, e você?
- Bom, depois que fui transferido pra sede do escritório na Capital, minhas estadias na cidade ficaram bem esporádicas. Depende muito da demanda de trabalho. Mas, haveremos de dar um jeito. Tranquilizou ele.

Um carro estacionou no habitual ponto onde ele costumava deixar o seu próprio auto. Um leve toque de buzina lhes chamou a atenção.

- É o meu pai. Ela observou a sorrir.
- Bom, hora de voltar ao trabalho. Hoje, a noite será, realmente, uma criança. Ele brincou.

Após cumprimentar os ocupantes do automóvel, ele despediu-se dela; ela dele e este por sua vez, dos recém-chegados. Em breve o automóvel rompeu o trânsito, enquanto ele acenava. Por um instante sentou-se sozinho, pensativo. Em seguida, espalmou as mãos sobre as coxas em leves palmadas, ergueu-se, atravessou a rua e adentrou ao prédio.

Realmente, naquela noite, ele trabalharia até altas horas.

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