sábado, 22 de fevereiro de 2014

Fragmentos de uma vida… (III)

O sol já descia entre os prédios. Aos poucos intensificava o costumeiro vai-vem de pessoas e carros. Uma agonia de sons misturava-se em um zumbido disforme à percepção humana. Buzinas, vozes, gritos, freadas bruscas, semáforos fechados, trote de cavalos sob ferraduras, toques de celulares, carros de som ainda em atividade, ofertas das lojas de calçada, passos de chinelo, sapatos, gritos de pega-ladrão, sirenes de polícia, bombeiros, viaturas de socorro… e, ainda, os sons peculiares produzidos pela revoada de pombos sempre presentes na Praça Central naquele horário.

Envolto naquele louco cenário urbano, um casal de jovens, dentre tantos que ali passavam ou estavam, balbuciava palavras que, observado de certa distância parecia comunicar-se por mímicas.

- E então, como andam os treinos? Quis saber ele.
- Intensificamos nos últimos dias. O dia “D” está chegando. Respondeu ela sem se alterar.
- E qual é o sentimento agora? Ele a instigou novamente.
- Sempre há uma certa apreensão, afinal é um jogo do qual preciso sair com a vitória.
- Encara como um jogo, apenas?
- Força de expressão. Ela justificou.
- E por que precisa tanto ser a vencedora?
- Ora… porque me preparei para esse dia. Respondeu ela simultaneamente, ao esfarelar migalhas de pão ao chão, aos pombos que já ameaçavam impaciência.
- E acredita que foi suficiente? Preparar-se para apenas um dia foi o bastante? Questionou ele sem para isso encará-la.
- Acho que sim.
- Você acha? Dessa vez ele a encarou. - E quanto às demais, já lhe passou pela cabeça que elas também estarão preparadas?
- Claro.
- Acredite, de todos os preparados, o único vencedor será aquele que tiver a certeza plena que está pronto. Nesse caso pronta. E quando nos preparamos devemos fazê-lo para a vida inteira e não para um mero dia.

Ela sorriu, ele não.

- O que foi? Indagou ela.
- Nada não. Respondeu ele a olhar com displicência o movimento, avenida acima e abaixo. - E quando será o evento?
- Em pouco mais de um mês.
- Em pouco mais de um mês e você acha que está pronta?

Ela não conteve um riso moderado.

- Está me saindo um belo ranzinza.
- Ainda que ranzinza, ao menos belo. Ele gracejou.
- Está certo, senhor sabichão, depois de meses sob treinos intensivos, realmente, não devo dar-me às incertezas. Sinto-me, sim, apta à buscar a vitória.
- Bravo, garota! Comemorou ele. – Quem a olha percebe uma mulher determinada e bela; cheia de vida e muito inteligente. Mas, ser tudo isso de nada adianta, caso você mesma não se perceba assim. E ter essa percepção não é tão difícil o quanto dizem por aí. És jovem demais, e há muitas verdades na vida que somente vem à tona com a experiência. Por outro lado, o ser velho não é pressuposto à experiência. Compreende?
- Claro e evidente.

Ela encostou no ombro dele e sorriu ternamente.

- Percebo isso claramente. Você é a prova disso!

Ele a recebeu com carinho e sorriu.

- E a sua família? Questionou ele.
- Apoio incondicional.
- Muito bom. A família é um suporte importante. Mas, no momento oportuno, devemos alçar voo próprio.
- Vai me ver lá? Quis saber ela.
- Certamente.
- Certamente?
- Farei alguns trabalhos fora da cidade. Não sei ao certo quando estarei de volta.
- Já havia me dito isso. Mas se cá estiver, seria capaz de ir lá me ver?
- Claro que sim. Irei com maior prazer. De qualquer forma estarei torcendo, lá, ao vivo ou pela TV.

As luzes nos postes já anunciavam a chegada definitiva da noite, idem os farois de alguns veículos. O cenário continuava frenético, todavia, desprovido da luz natural.

- Nossa! pasmou-se ela. – Já é noite, preciso ir.
- De fato.
- E quando será a sua viagem? Quis saber ela.
- Em dez dias.
- Nos veremos até lá?
- Claro que sim. Mas, ocorrendo algum imprevisto, peço que jamais esqueça que estarei contigo, ainda que não perto o bastante.
- Sim, sim…
- Tem certeza que não precisa de carona hoje? Ele quis saber.
- São apenas duas quadras e eu amo andar a pé.
- Como quiser. Observou ele com ar relutante.

Despediram-se. Ela postou-se a andar.

-Ei! Ele a chamou. – Lembre-se também: “somos o que, repetidamente, fazemos”.

Ela voltou-se sorridente. Olhou em volta a buscar argumentos e o encarou graciosa.
- Este eu sei: Aristóteles?
- Disse que sabia. Por que a dúvida?
- Sim. Aristóteles disse isso. Eu tenho absoluta certeza.

Ela sorriu arteira, jogou ao vento um beijo e foi-se, enfim. Ele com aspecto sereno, esticou-se no banco frio da Praça Central, envolvido num bocejo incontrolável e longo.

- Ela é incrível! Balbuciou para si antes de juntar alguns pertences, adentrar o automóvel e desaparecer cidade adentro.

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